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6 de fevereiro de 2012

Lógica Abandonada - Parte I


Madrugada de domingo. O tique-taque do relógio martela em minha mente e eu fico cada vez mais confuso. Não gosto de me sentir confuso, gosto de organização, gosto de disciplina, gosto de estantes etiquetadas, separando os livros por assuntos devidamente, perfeitamente. Mas já não é possível eu separar os livros, já não é possível etiquetar as estantes... As estantes da minha memória estão despencadas, já não há madeira sobre madeira e os livros das minhas lembranças estão esparramados e eu não consigo mais lembrar onde colocá-los. E tudo isso por causa de alguém que acaba de me abandonar...

Sim! Eu, que costumava gritar para quem quisesse ouvir que não queria relacionamentos e que nunca teria meu coração partido. Eu, que me gabava por ter o coração mais frio. Eu acreditava que não possuía sentimentos e tudo mudou de uma forma tão rápida que já não há mais estruturas. Como já dizia Shakespeare um dia a gente aprende. E como aprende! Às vezes de uma forma muito cruel.

Tudo começou em fins de janeiro. Ainda estava em férias escolares e, pra mim, essa é a pior época do ano. Praticamente todas as pessoas que conheço reclamam dos professores, dos deveres e de tudo que se relaciona a escola, mas eu sou diferente. Eu sempre fui diferente em muitos aspectos. Eu gosto da escola e gosto de tudo que se refira a ela. Gosto de manusear os livros que recebo, gosto de escrever nos cadernos, que demoro tanto a escolher. Gosto da voz dos professores me levando a outros lugares, me mostrando o conhecimento vivo, me fazendo sentir alguém superior. Eu gosto e como gosto!
Para compensar a falta que a escola me fazia ia todos os dias a biblioteca do meu bairro e ficava por lá praticamente o dia todo. Lia todos os tipos de livros, viajava para todos os lugares, reais ou imaginários. Tudo isso sem sair do lugar.

De tanto ir à biblioteca acabei me apegando bastante à bibliotecária e essa amizade me dava vantagens. Podia levar quantos livros quisesse para casa e, o melhor, ela me deixava ajudá-la a arrumar as estantes, categorizar os livros. Para mim não havia coisa melhor depois, claro, de estudar.
Essa bibliotecária era muito sonhadora e romântica. Vivia sonhando com príncipes encantados e esperava um dia casar e ter uma família feliz. Nesse aspecto éramos totalmente diferentes já que não esperava me engajar em relacionamentos. Na verdade não esperava nada. Eu vivia, sem pensar no amanhã. Tudo que queria era aprender, categorizar, arrumar. Gostava de coisas lógicas e há algo mais ilógico do que o amor?
E tudo começou nessa época. Lembro-me do dia, lembro-me da hora e lembro exatamente o que estava fazendo. E não há como esquecer o que senti, só não há como definir em palavras.

A biblioteca do bairro não era muito visitada. Pra falar a verdade, eu era um dos poucos garotos do bairro que a visitava regularmente. E, por esse motivo, estranhei quando um garoto entrou na biblioteca e, mais estranho ainda, já foi direto à estante dos romances, sem nem pedir informações. Isso me admirou, mas eu não senti apenas admiração. Fiquei curioso e resolvi me aproximar um pouco.
O que eu vi me agradou. Ele era bonito e, quando me viu, sorriu para mim. Tive a sensação que ele me conhecia e que ele queria algo de mim. Mas... O que? Quando dei por mim estava retribuindo o sorriso e indo em direção a ele. Uma parte queria voltar para as estantes de crônicas, outra queria ir para as estantes de romances, para ele, para o amor...

É estranho como o amor é bem mais forte do que a razão. Eu não consegui me segurar e acabei indo para a estante dos romances. Aquele momento mudou tudo e, pensando agora, não sei se foi bom eu ter ido. De todo jeito eu não conseguiria me segurar de modo algum.
Rafael era o seu nome. Grego, nome de anjo também, como vim a saber depois de algumas pesquisas. Estava à procura de romances de amor. Meio redundante não? Todos os romances deveriam ser de amor... Talvez não. Existem pessoas que ainda não estão preparadas para se deparar com o amor e, no entanto, adoram um romance.

Para encurtar a historia dessa nossa curta relação, ele começou a freqüentar cada vez mais a biblioteca e tive a sensação de que os romances de amor não eram bem o que ele realmente procurava. E não me enganei. A lógica ainda era a grande parte do meu ser.

Depois de uma semana ou duas (pouco a pouco comecei a perder a noção de tempo, como a maioria das pessoas faz nas férias) ele resolveu se declarar. E fez da forma mais emotiva e mais lógica. Uma antítese pura, do jeito que mais me intrigava e mais me admirava, do jeito que ele era. Foi citando frases de vários dos meus pensadores preferidos, conseguiu colocar amor nas Leis de Newton, fez serenatas com os discursos de Galileu e citou as frases mais animadoras dos filósofos gregos. Foi extasiante e maravilhoso, mas, naquele momento, as primeiras estantes da minha vida começaram a ser recheadas de traças, preparando-as para o desmoronamento final.


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